Salamanca meu amor, por José Donizete Fraga

Publicado em: 14/12/2023
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Salamanca meu amor é um conto sobre Salete, uma mulher brasileira que vai para Salamanca, na Espanha, para trabalhar e sustentar sua filha doente no Brasil. Enfrentando a prostituição, cirurgias de venda de órgãos e desafios, Salete luta para sobreviver e salvar sua família. Leia a primeira parte do conto, dividido em 6 partes, pelo Pauta Livre, ou acesse pelo link o texto completo: O chamado da atendente, num espanhol castiço, lembra-lhe da voz metálica de boas-vindas ao desembarcar em solo espanhol. Bienvenidos todos a Madrid Barajas! Bienvenidos em España! Depois, a voz da agenciadora numa intimidade quase cálida, a simular velhas amizades num português da Beira, Senhorita Salete da Anunciação, o autocarro está a sua espera, faz favor! Parecia tanto tempo, já! A longa viagem de avião, a comida que se lhe esfarinhava na boca, como isopor ralado, a foto de Marina no santinho do pescoço a lembrar a saudade que doía devagarinho, como um torniquete. Depois a realidade se impondo às ilusões, a mulher do autocarro repondo as coisas em seu curso natural, Daqui a Salamanca é um pulinho, vais ver, O quarto custa cem euros por semana, se não quiseres cozinhar, são cento e cinquenta, a roupa tu que lavas, somente aos domingos, ouviu? Ah, sem esquecer a regra número um, jamais traga cliente para casa, ouviu? Jamás! Até que no início as coisas caminharam bem. A beleza tropical de sua pele cor de jambo permitia-lhe ajuntar um bom dinheiro. Fazia e refazia as contas. Tudo correndo bem e mais uns dois anos retornaria. A saudade de Marina, lancinante no começo, cicatrizara, deixando uma ferida cascosa que só doía aos finais de semana, ao lavar da roupa. Aí, como num ritual, deixava que o salgado das lágrimas lhe purgasse das impurezas e lhe absolvesse e lhe deixasse a alma branca e alva como o uniforme das enfermeiras, até que, invariavelmente, a voz de galho velho da matrona do autocarro viesse, melosa, a garimpar cumplicidade, A gaja está a pelar de saudades da miúda, não está? Tudo corria bem, até que viera o telefonema do Brasil, Mande um dinheiro extra, que a Marina pegou febrão e não quer sarar, os médicos estão preocupados e eu também. Fora o bastante para se desesperar. Mandara todo o dinheiro que já tinha acumulado. Nos finais de semana, orava mirando o santinho com a foto. Aumentara a jornada e o corpo se ressentia do pouco sono. O pânico se abatera, quando, duas semanas depois, novo telefonema reiterava, A danada da febre não quer passar, mande mais alguns euros, sabe como é, os médicos estão custando os olhos da cara. O chamado repetido da atendente a traz de volta. Adentra o consultório e se espanta com a pouca idade do médico. Senta-lhe à frente e começa, nervosa e torcendo as mãos, estalando a junção nodosa dos dedos, num clac-clac que substituía as palavras. __ E então? Indaga o médico. __ A senhora Inês me encaminhou… me pediu que…, embaraça. __ Ah, a senhora Santalucia? Pois não, senhorita. __ Estou precisando de um dinheiro… a senhora Inês me disse que… eu tenho os dois rins inteiros, tenho uma boa saúde… eu quase nem preciso dos dois, sabe? Então… __ Quatro mil euros pelo rim, atalha o médico. __ Eu precisava de dez mil, doutor, diz em tom aflito. __ Cinco mil é o máximo que eu posso pagar. À saída do consultório, um velho andarilho caminha resoluto em sua direção. Para à sua frente e, como se contasse um segredo antigo, sussurra, olhando para os lados e disfarçando a voz de conspiração, En la Centenera, las putas de Aragón se ván al cielo! Caminha devagar, sem rumo. Chega à praça da Estação e senta em um dos bancos, vazios àquela hora. Tenta coordenar as ideias. Desde que viera do Brasil, sua vida mergulhara em um torvelinho alucinante, que não lhe permitia maiores elucubrações. Sua rotina era uma ciranda, sem direito a pausas nem reflexões. As noites, que começavam quase sempre nas cercanias do centro e terminavam, invariavelmente, nas pousadas próximas, funcionavam como um anestésico eficaz. Durante o dia, repunha o sono atrasado. Não sobrava tempo para meditar sobre o rumo a seguir. Seguia o fluxo recomendado por Inês, Ah, rapariga, tivesse eu o teu entrepernas e a tua pele morena, não me contentaria com esse ramerrame de cafetina: me lançaria aí pelas ruas e esse noviços teriam que se parir em euros por mim, ah, se teriam! Somente agora, ali no banco da praça da estação, indagou-se de que forma se resolveriam as coisas; somente ali, vendo os pombos que lutavam para se equilibrar na estátua de Luís de León, quedou-se a pensar, coordenada e metodicamente, como raios se ajeitaria com um rim só, que essa vida de notívaga não era nenhum refresco. A cirurgia fora rápida. Numa clínica afastada, dissimulada entre o casario cinzento, próximo ao aeroporto e da Base de Matacán. O jovem médico vinha a lhe examinar os progressos, A señorita tem uma saúde de ferro, já já estará novinha em folha. Nas horas mortas da solidão da tarde, ia à janela espiar os rapazes de Matacán, que passavam impávidos em suas fardas engomadas. A saudade de Marina vinha em vagalhões sucessivos, que lhe doíam primeiro no peito, para depois terminar em pontadas finas no flanco costurado, como a lhe denunciar a ausência do rim, que mesmo não existindo, ainda teimava em doer. Fazia as contas. Assim que tivesse alta, iria postar o dinheiro e saber das notícias. Tudo retornaria aos eixos e a Marina cresceria saudável. Nessas horas, buscava o santinho no pescoço, que tivera que deixar com as enfermeiras. Refazia os planos. Mais umas duas semanas de descanso e retornaria à labuta. Viria mais para os lados de cá. Como nunca soubera de Matacán? Os soldados, todos espremidos entre o vigor de seus vinte anos e os rigores da quarentena, seriam ótimos clientes. Viria mais para esses lados. Viria sozinha, que a concorrência nas ruas era dura e desleal. Em pouco tempo juntaria o que precisava. Acompanhe a continuação do conto nos próximos posts. Texto por José Donizete Fraga* * O conto, escrito pelo servidor José Donizete, é parte da obra Memórias da Diáspora, publicado pela Academia de Letras de Aparecida de Goiânia (ALAG) em 2006. O escritor é Mestre em Literatura e Crítica Literária, pela PUC-Goiás e é membro da Academia de Letras de Aparecida de Goiânia, onde ocupa a cadeira número 7. Além desta obra, o autor tem outros quatro livros publicados: O Decálogo da Ira (Goiânia, Editora Kelps, 2001); O Livro Negro do Homem (Aparecida de Goiânia, ALAG, 2004); Cantos Subterrâneos (Editora Kelps, 2015) e A Estética da Dissonância em Fiodor Dostoiévski (Editora Beau Bassin, 2019). Este espaço Pauta Livre é seu! Participe! Envie seu texto, se possível, com foto, para comunicacao@trt18.jus.br

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