A sala de sessões do Plenário Ipê se transformou em uma sala de cinema na manhã desta sexta-feira (30/5) para a exibição do filme Doutor Gama, no evento “Equidade Racial na Tela”, promovido pelo Subcomitê Regional do Programa de Equidade de Raça, Gênero e Diversidade do TRT-GO. O filme, que retrata a vida do primeiro advogado negro do Brasil, Luiz Gama, foi seguido de debate com representantes do Judiciário, da OAB e da sociedade civil. A atividade foi aberta ao público, com emissão de certificados pela Escola Judicial.
Na abertura do evento, o desembargador Marcelo Pedra, coordenador do Subcomitê de Diversidade e Equidade do TRT-GO, destacou o papel da cultura como instrumento de transformação social, lembrando que, apesar de o Brasil ser um dos países mais miscigenados do mundo, é também um dos mais racistas. “Mas se essa estrutura cultural forma racistas, a cultura, por meio da ciência e da arte, pode ser utilizada com a finalidade de nos transformar. Transformar a nossa sociedade, transformar as nossas pessoas”, afirmou. “Luiz Gama representa um marco importantíssimo, relevantíssimo na luta pela equidade, pela igualdade e pelo respeito aos direitos das populações vulneráveis da nossa sociedade”, completou.
O presidente do TRT-GO, desembargador Eugênio Cesário, elogiou a iniciativa do subcomitê ao exibir o filme sobre a vida de Luiz Gama. “Quero parabenizar o Subcomitê de Diversidade e Equidade do TRT, na pessoa do seu gestor, desembargador Marcelo Pedra, pelo brilhante trabalho que vem fazendo”, afirmou ao ressaltar que a adesão da comunidade demonstra a efetividade dessas ações. Já a desembargadora Rosa Nair, diretora da Escola Judicial, destacou a importância de revisitar uma história que ainda deixa marcas. “É uma página vergonhosa do nosso passado, que ainda se reflete no presente. Luiz Gama foi uma dessas figuras que vieram ao mundo para transformar positivamente a vida de muitos”, afirmou. “Todos nós temos que, pelo menos, minimizar as consequências dessa fase triste da história do Brasil”, destacou.
Doutor Gama é um drama biográfico dirigido por Jeferson De, que narra a vida de Luiz Gama, figura central do abolicionismo brasileiro. Nascido em 1830, livre, filho de mãe preta e pai branco, foi vendido como escravizado pelo próprio pai na infância e, mesmo assim, conseguiu tornar-se advogado, jornalista e poeta. Luiz Gama foi alfabetizado aos 17 anos e, posteriormente, estudou Direito de forma autodidata, frequentando aulas da Faculdade de Direito do Largo São Francisco como ouvinte, onde não foi aceito como aluno regular por ser negro.
O filme retrata sua trajetória no século XIX com sensibilidade e respeito, destacando sua genialidade ao enfrentar o sistema escravocrata pelos meios legais. Um dos pontos centrais do filme é a vitória de Gama nos tribunais ao defender um homem escravizado julgado por ter matado seu “senhor”. Com um vasto conhecimento das leis e uma diferenciada habilidade oratória, Gama conseguiu provar a legítima defesa do homem, por ter agido em defesa da esposa negra que era constantemente abusada e torturada pelo seu senhor. O advogado conseguiu libertar mais de 500 pessoas escravizadas.
Após a exibição do filme, o debate reuniu falas dos debatedores e dos participantes do evento sobre racismo estrutural, memória histórica e o papel do Judiciário na promoção da equidade. A psicóloga Raíssa Lima destacou que as cenas do filme ainda refletem a realidade brasileira, lembrando que mais de duas mil pessoas foram resgatadas de condições análogas à escravidão em 2024, segundo dados do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Para ela, o antirracismo começa com a reflexão: “Quantas pessoas negras há nos espaços que frequentamos? Por que elas ainda são minoria, mesmo representando mais da metade da população brasileira?”. Raíssa defendeu que a luta não deve recair apenas sobre os negros, mas também sobre pessoas brancas, que precisam reconhecer seus privilégios e entender como eles sustentam desigualdades. “Parece passado, mas é presente. Ser antirracista exige reflexão e ação”, afirmou.
O servidor Manoel Messias Camelo, um dos membros do Subcomitê de Equidade e Diversidade do TRT-GO, emocionou ao contar a história de seu bisavô, assassinado num tronco de açoite em 1919, e refletiu sobre a proximidade da escravidão na linha do tempo familiar: “Não é coisa distante. O Brasil tem mais tempo de escravidão do que de liberdade.” Para ele, o exemplo de Luiz Gama mostra que é possível transformar o sistema por dentro: “Ele usou a própria estrutura legal para libertar centenas de pessoas. Foi como um hacker do Direito”, afirmou.
Em sua manifestação, o advogado Diogo Procópio, presidente da Comissão de Promoção à Igualdade Racial da OAB-GO, reforçou o papel da Justiça do Trabalho no enfrentamento ao racismo institucional. Para ele, a Justiça deve ser a precursora desse movimento e reconhecer que a base da pirâmide social é composta majoritariamente por trabalhadores negros e pardos. “Este evento marca a história do Tribunal Regional do Trabalho ao reconhecer e valorizar a base deste país, que são os trabalhadores”, afirmou. “O TRT, ao promover ações como esta, assume seu papel histórico e institucional na luta contra o racismo.”
Já o servidor aposentado Marcos Antunes refletiu sobre os discursos históricos utilizados para justificar a escravidão e a exclusão social da população negra no Brasil. Segundo ele, no período escravocrata, prevalecia o chamado “racismo científico”, que classificava o negro como pertencente à raça no grau mais baixo da evolução. Para ele, mesmo após a abolição, essa visão se perpetuou com a política do branqueamento e, mais tarde, com a ideia, ainda hoje disseminada, de que o Brasil vive uma democracia racial. “É muito difícil dizer para as pessoas que no Brasil tem racismo, e é terrível”, comentou, ao destacar que o maior desafio atual é superar essa negação do racismo.
Em sua participação, a servidora Lídia Barros destacou que o Brasil foi o país que mais recebeu africanos escravizados nas Américas, com quase 5 milhões de pessoas trazidas à força para o território nacional. Segundo ela, a abolição da escravatura não foi acompanhada de políticas de reparação ou inclusão, o que contribuiu para a perpetuação das desigualdades que ainda marcam a sociedade brasileira. “A Angela Davis tem uma frase que eu acho ótima, que ela fala que numa sociedade racista não basta a gente não ser racista. Nós precisamos ser antirracistas”, comentou.
Por fim, o servidor Manoel Camelo refletiu que o antirracismo exige mais do que boas intenções, exige revisar estruturas, enfrentar privilégios e aplicar as leis com um olhar atento às desigualdades. Ele destacou a estratégia de Luiz Gama ao usar as próprias regras do sistema a seu favor e defendeu que ser antirracista é “ir pra luta”, é questionar as estruturas e o modo como a lei é aplicada. E, dentro do Judiciário, seria questionar: “De que forma nós vamos aplicar essa lei? Se a aplicação dessa lei está passando por um processo de olhar: ‘Quem é? Quem está no banco dos réus? Quem é o empregado que está ali naquele banco? Quem é o vulnerável que está ali?’ É uma mulher? É uma mulher negra? É um homem? É um homem negro? É uma pessoa pobre? É uma pessoa transgênero?”. Para ele, seria uma luta antirracista da mesma forma que Luiz Gama fez, usando a própria tradição para tentar uma aplicação mais justa do direito.
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