“Após a separação, ele me seguia em todos os lugares e chegou a me ameaçar de morte caso me visse com outro homem. Até hoje, passados 15 anos da ameaça, ainda tenho medo de encontrá-lo.” O relato é de uma servidora do TRT-GO, que preferiu manter o anonimato, ao contar episódios de violência nos dois casamentos. No primeiro, sofreu perseguição e ameaça; no segundo, foi vítima de violência psicológica e patrimonial. “Sofri violência psicológica e financeira. O pai dos meus filhos tentava controlar até o meu salário e queria interferir no patrimônio da minha família. Mais tarde, descobri que ele escondeu bens enquanto ainda estávamos casados.” Hoje, ela afirma que ainda se sente manipulada por ele na relação com os filhos, mas aprendeu a abstrair. “Sigo em frente.”
Outro relato anônimo também escancara os efeitos da violência emocional disfarçada. “Você não vai passar no concurso, você é burra.” A frase dita pelo ex-marido marcou os anos de violência psicológica vividos por uma outra servidora do Tribunal. Cada ataque, segundo ela, virou combustível para estudar ainda mais e conquistar a aprovação no concurso do TRT, o que a ajudou a ter independência financeira. Ela conta que, apesar de não ter sofrido agressões físicas, viveu um longo ciclo de abuso silencioso, com agressões verbais e humilhações constantes. Hoje, há vários anos separada, ainda relembra um episódio tenso: “Quando tive coragem de responder à altura uma provocação, ele me olhou com tanto ódio que parecia querer me esganar, mas não teve coragem.”
“Preferi viver sozinha a repetir essa história. Hoje eu entendo que as humilhações foram, sim, uma forma de violência, mesmo que disfarçada”, analisa. Seu depoimento reforça que a violência doméstica nem sempre deixa marcas visíveis, mas compromete profundamente a saúde mental das vítimas. “A gente vive numa estrutura machista, que faz com que muitas mulheres naturalizem essas situações. É difícil falar, mas é necessário. Porque sei que muitas outras mulheres vivem isso em silêncio”, avaliou.
As duas servidoras que toparam ser entrevistadas em anonimato afirmaram que não quiseram registrar queixa contra os ex-companheiros à época dos fatos, atitude que, infelizmente, é muito comum entre mulheres vítimas de violência doméstica. Uma pesquisa nacional inédita conduzida pelas professoras Fabiana Severi (USP) e Luciana Ramos (FGV) revelou que, apesar de 40% das juízas e servidoras do sistema de justiça terem vivenciado alguma experiência de violência doméstica ou familiar, apenas 14% buscaram ajuda. Os principais motivos para não procurarem ajuda foram a percepção de que a situação não era grave o suficiente (47%), a preferência por resolver a situação por seus próprios meios (32%), a vergonha de se expor no ambiente profissional (14%) e o medo da reação de familiares (12%). Além disso, 10% das mulheres afirmaram que o processo é demorado e sem resultado satisfatório.
Realizada em 2021, a pesquisa foi conduzida por meio de questionário eletrônico com garantias de anonimato e recebeu mais de 300 respostas completas de magistradas e servidoras de todo o país, principalmente da Justiça Estadual, Federal e do Trabalho. O estudo teve como objetivo identificar os fatores que influenciam a decisão dessas mulheres de procurar (ou não) apoio institucional diante da violência doméstica, ainda que estejam inseridas em um ambiente de domínio jurídico.
A conclusão mais contundente do levantamento é que o ambiente do próprio Judiciário, que deveria ser espaço de proteção, ainda é percebido como hostil pelas mulheres que vivenciam essa realidade, o que as leva a silenciar e evitar a denúncia. A vergonha, o medo e a naturalização da violência ainda se impõem, mesmo entre mulheres com formação jurídica e estabilidade profissional.
Para a psicóloga do TRT-GO Gabriela Castro, apesar de a violência doméstica atingir mulheres de todas as classes sociais, muitas daquelas que ocupam cargos elevados, especialmente no serviço público, ainda se sentem constrangidas a denunciar. Segundo ela, o medo da exposição, a vergonha de viver uma situação de abuso mesmo sendo instruídas e bem-sucedidas profissionalmente, e até a descrença nas instituições, acabam contribuindo para o silêncio.
“É por isso que essas políticas precisam garantir uma equipe tecnicamente qualificada e sigilo, garantindo a segurança dessas mulheres em vários níveis, para que a mulher se sinta segura e confie que ela pode buscar apoio, que ela pode buscar ajuda, que ela pode sim ter um amparo para sair de uma situação tão difícil”, ressaltou a psicóloga ao mencionar a importância das campanhas de enfrentamento à violência doméstica.
A violência doméstica é mais que agressão física, ela pode ser também psicológica, moral, sexual ou patrimonial. O controle sobre o que a mulher veste, com quem fala ou quanto gasta, por exemplo, também é uma forma de dominação que precisa ser enfrentada. “A Lei Maria da Penha define diversas formas de violência contra a mulher. A violência psicológica, por exemplo, envolve humilhações, controle, rebaixamento da autoestima e isolamento da mulher de sua rede de apoio. Já a violência patrimonial ocorre quando há apropriação de bens ou imposição de dívidas. Todas essas formas, muitas vezes veladas, trazem prejuízos profundos à saúde mental das vítimas”, explicou a psicóloga Gabriela Castro, do TRT-GO.
Além de impactar a vida pessoal e a saúde mental, a violência doméstica também afeta diretamente o desempenho profissional das vítimas, segundo Gabriela Castro. Ela explicou que essas mulheres costumam apresentar queda de produtividade, ausências frequentes e até adoecimento mental. “A mulher até pode estar presente ali, mas com adoecimento mental, em decorrência dessa violência, dificuldade de concentração, maior irritabilidade, maior isolamento, em função da vergonha ou mesmo do medo que pode estar havendo de que alguém descubra essas violências.”
A psicóloga ressalta que mudanças comportamentais no local de trabalho, como alterações de humor ou retraimento, podem ser sinais importantes de que algo está errado. Por isso, é essencial que os colegas de trabalho estejam atentos e que o ambiente profissional se torne também uma rede de apoio e acolhimento para essas mulheres.
Atendendo à Recomendação nº 102 do Conselho Nacional de Justiça, o TRT-GO instituiu no ano passado, por meio da Portaria nº 1518/2024, um protocolo de prevenção e medidas de segurança voltado ao enfrentamento da violência doméstica contra magistradas e servidoras, cujo foco é garantir acolhimento sigiloso, humanizado e seguro, com respeito às peculiaridades de cada caso.
O protocolo também garante o anonimato da vítima, sem comunicação automática com autoridades policiais ou judiciais, salvo se houver solicitação expressa para instauração de inquérito ou concessão de medidas protetivas. Estagiárias e trabalhadoras terceirizadas também serão acolhidas e orientadas, podendo ser encaminhadas de forma segura às autoridades competentes, se desejarem. “O protocolo demonstra o compromisso do TRT-GO com a causa e a disseminação das medidas internas e da rede que existe externamente à instituição para que a mulher possa se sentir, em primeiro lugar, informada, em segundo lugar, amparada, protegida e apoiada em todo esse processo, nesse momento em que a mulher fica muito vulnerável”, ressaltou a servidora e psicóloga do TRT-GO Gabriela Castro.
Entre as medidas previstas no protocolo estão:
O acesso ao protocolo é feito mediante requerimento formal, via processo administrativo (Proad), direcionado à Presidência do Tribunal.
A psicóloga Gabriela Castro chamou a atenção, por fim, para a escalada gradual da violência, tanto em gravidade quanto em frequência, podendo iniciar com atos mais ou menos sutis e acabando com atos de extrema gravidade, o que reforça a importância de reconhecer os sinais desde o início. “É por isso que é tão importante a gente estar atento aos sinais, para que possamos oferecer suporte e apoio às mulheres que, porventura, estejam sofrendo violência doméstica”, conclui.
Central de Atendimento à Mulher: 180
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Ouvidoria da Mulher do TRT-GO: trt18.jus.br/mulhersegura
Secretaria de Saúde ou Secretaria de Segurança Institucional do TRT-GO
Clique aqui para ler o protocolo de prevenção e medidas de segurança do TRT-GO.
O TRT-GO vai realizar na sexta-feira, 6 de junho, das 9h30 às 11h30, o evento “Enfrentamento da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher praticada em Face de Magistradas e Servidoras”, no Plenário Ipê. Com palestra da professora Cristina Lopes Afonso, especialista na área, a iniciativa busca sensibilizar e capacitar magistrados, servidores, estagiários, terceirizados e o público em geral para o enfrentamento da violência doméstica no ambiente institucional. As inscrições estão abertas no sistema da Escola Judicial (Ejud-18) até o dia do evento.
Comunicação Social / LN / JA
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