O dia 20 de novembro, celebrado como Dia da Consciência Negra, relembra a data em que Zumbi, o último dos líderes do Quilombo dos Palmares, foi executado. Em um país que por mais de 500 anos ergueu sua estrutura social sobre a escravidão, a exclusão e a negação de direitos, essa data carrega o peso da história e também a potência de um povo que transformou dor em resistência, silêncio em voz e marginalização em luta pela existência.
Nesta reportagem, você encontrará relatos que revelam como a presença de pessoas negras no serviço público, no sistema de Justiça e em outras áreas estratégicas ainda é marcada por desafios, mas também por avanços importantes. As histórias apresentadas dialogam com debates atuais sobre equidade racial, políticas afirmativas e representatividade, elementos essenciais para compreender o papel das instituições na superação do racismo estrutural.
Antes de ingressar no curso de Direito, o desembargador Marcelo Pedra buscou outros caminhos acadêmicos, iniciando os cursos de Agronomia e de Ciências Humanas. Mas a vida, como ele mesmo relata, exigia pressa. Jovem pai de família, sentia necessidade de encontrar uma formação capaz de garantir estabilidade e ascensão rápida. Foi assim que o Direito surgiu primeiro como alternativa prática e, depois, como surpresa afetiva: “A opção veio por razões práticas, mas se consolidou porque houve afinidade. Eu me apaixonei pelo Direito”.
Servidor do TRT-GO desde cedo, Pedra já tinha claro que seu destino profissional estava na magistratura e seguiu estudando até alcançar o cargo que hoje ocupa. Como ele próprio pontua, nenhuma trajetória de pessoas negras no Brasil é vivida sem cicatrizes. Apesar de nunca ter enfrentado discriminação explícita dentro do tribunal, o desembargador relembra um episódio marcante, quando um advogado entrou em seu gabinete, olhou ao redor e perguntou onde estava “o juiz”. “Eu percebi claramente que aquilo se deu devido à minha aparência”, relata.
Ainda assim, ele não enxerga tais episódios como motivo para apontamentos individuais: “Vivemos em uma sociedade em que prevalece uma mentalidade racista. Isso está no automático das pessoas. Esses episódios revelam valores e inclinações inconscientes que herdamos historicamente. Por isso, precisamos de paciência, compaixão e letramento para transformar essa realidade”, conta.
Quando fala sobre seu processo de autodeclaração racial, o magistrado expõe como o reconhecimento identitário também é fruto de um percurso social. Primeiro, identificado pelo tribunal como homem branco, anos depois autodeclarado como pardo e, finalmente, reconhecendo-se como homem preto, Marcelo Pedra descreve esse movimento não como inconsistência, mas como maturidade. “Identidade é um dado cultural, uma construção. Trata-se de um processo. Estamos em um novo momento, no qual o brasileiro começa a descobrir a si mesmo racialmente e a assumir, de maneira mais autêntica, aquilo que é”, analisa.
Ciente da sub-representação de pessoas negras nos espaços de poder, ele se reconhece como referência e assumiu essa responsabilidade de forma consciente ao pleitear a promoção a desembargador. “Uma das razões pelas quais busquei esse cargo foi exatamente conquistar um espaço que precisa ser ocupado por pessoas negras. Somos a maioria da população e não é justo que estejamos ausentes dos postos de decisão”, reflete.
O desembargador é também o atual gestor regional do subcomitê do Programa de Equidade de Raça, Gênero e Diversidade do TRT-GO. Para ele, integrar uma instituição que busca ser inclusiva, democrática e atenta às desigualdades estruturais é não apenas motivo de orgulho, mas também um chamado coletivo à responsabilidade. “É gratificante atuar em favor de uma sociedade mais justa e igualitária. Isso deve ser valorizado por todos nós que somos parte desse tribunal”, afirmou.
A trajetória da juíza Wanessa Vieira, titular da 6ª Vara do Trabalho de Goiânia, é marcada pela consciência nítida de seu papel como mulher negra em um espaço historicamente restrito. Antes de chegar ao Direito, iniciou graduação em Matemática, área pela qual também nutria afinidade. Mas foi ao perceber o prazer que sentia em escrever, enquanto colegas torciam o nariz para explicações textuais, que compreendeu que seu caminho seguia por outra direção. No vestibular seguinte, migrou para a área jurídica e encontrou, no estudo de temas sociológicos, dos direitos humanos e da justiça, a realização que buscava.
Vinda de uma família humilde, conciliou trabalho e estudo desde cedo. Aos 18 anos, foi aprovada no concurso da Infraero e atuou como controladora de tráfego aéreo na Torre de Controle do aeroporto Santa Genoveva, em Goiânia. Já na Universidade Federal de Goiás (UFG), descobriu sua paixão pelo Direito do Trabalho e pela Justiça do Trabalho. A juíza passou por todos os cargos acessíveis por concurso na área, estagiária, técnica, analista, até alcançar, em 2011, o sonho da magistratura trabalhista.
Assim como para muitas mulheres negras no Brasil, sua caminhada também foi atravessada por preconceitos e estereótipos. Wanessa relata episódios de deslegitimação que ainda hoje recaem sobre mulheres negras em posições de autoridade, como ser confundida com atendente ou ser questionada sobre onde estaria “o juiz” quando não estava de toga. “A mulher negra que ocupa espaços de poder frequentemente enfrenta a necessidade de provar sua competência de formas que não se vê serem exigidas aos homens”, observa.
Ao ser identificada por outras mulheres negras como referência, a magistrada compreende a dimensão simbólica que seu cargo carrega. Recorda-se, emocionada, de quando uma advogada a abordou timidamente perguntando se ela se autodeclarava negra. Ao ouvir um “sim, com certeza e com muito orgulho”, a advogada sorriu, afirmando o quanto era raro ver uma mulher negra na magistratura. “Ainda somos minoria e, por isso, é tão importante ocupar esses espaços com consciência de nosso potencial transformador”.
Para ela, mulheres negras, por vivenciarem simultaneamente racismo, desigualdades de classe e sexismo, desenvolvem uma percepção ampliada sobre injustiças sociais e violências de gênero. A magistrada destaca a importância dos Protocolos de Julgamento com Perspectiva de Gênero e Antidiscriminatória adotados pela Justiça do Trabalho, instrumentos que dão visibilidade às interseccionalidades que atravessam a sociedade brasileira e orientam decisões mais humanizadas e responsáveis.

Advogado criminalista e presidente da Comissão Especial da Promoção da Igualdade Racial da OAB Goiás, Diogo Procópio
Formado pela Universidade Católica de Goiás (UCG) em Direito, Diogo Procópio já esteve em várias áreas de atuação: de cargos voltados à proteção de crianças e adolescentes à atuação na Polícia Penal, ficou por 10 anos no serviço público e hoje completa sete anos como advogado.
Sempre pautado por abordagens raciais, Procópio foi o primeiro presidente da Associação Nacional dos Advogados Negros (Anan) em Goiás. Atualmente, preside a Comissão Especial da Promoção da Igualdade Racial (Cepir) da Ordem dos Advogados do Brasil em Goiás (OAB-GO), que atua em diversas frentes para combater o racismo e promover a igualdade.
Em suas funções como presidente, Diogo reconhece que hoje ocupa lugares de representatividade. “O que eu trago hoje na minha presidência, em função das dinâmicas que enfrentamos em relação à posição da igualdade racial, é que nós negros ocupássemos lugares de posição. Lugares que são nossos e nos foram tirados há 500 anos”, afirma.
Com base na sua experiência como policial penal, o advogado reconhece que o crime tem cor e raça no Brasil. Durante toda sua formação dentro do Direito Penal, ele pôde observar que a grande maioria da população carcerária é pobre e negra. Segundo ele, muitas dessas pessoas buscaram sobreviver de outra forma, mas foram atraídas para o crime pela ausência de oportunidades.
“Quando nós negros viemos para esse país como escravos, nos foram tiradas grandes oportunidades de conviver com a sociedade. Essa desvantagem é o que traz esse monte de embaraços que hoje a sociedade vive. O sistema carcerário é diretamente proporcional às oportunidades que nos foram retiradas. Por exemplo, o fato de não termos emprego, não termos moradia, vivermos em favelas faz com que a sociedade enxergue esse povo de forma marginalizada”, reitera.
Diogo ainda relata o árduo trabalho de ter que se mostrar competente a todo e qualquer momento. “Eu sou testado a todo momento. Eu sempre tenho que fazer meu trabalho duas vezes melhor do que um branco faz para me destacar. Eu nunca serei bom porque sou branco, muito menos porque sou negro”, reflete.
Procópio finaliza com um questionamento: “Por muito tempo nós lutamos. Mas vamos ter que lutar até quando?”
Rejane Cristina Gomes tinha o sonho de se formar em Letras ou Psicologia, mas foi o Direito que abriu as portas para ela. “Eu passava por várias seleções de emprego e quando eu chegava na entrevista não passava, porque eu não era o padrão da mulher que eles queriam, por ter cabelo crespo e ser negra. Eu resolvi fazer concurso porque é um processo isento. Você faz a prova e passa, independentemente da aparência que tiver. Então, eu fiz o concurso, porque as outras portas se fechavam para mim”, conta.
A servidora do Gabinete do desembargador Marcelo Pedra, ainda relembra que durante sua vida, desde o ensino fundamental até a graduação, pôde contar nos dedos quantas pessoas negras estudaram com ela. Além disso, Rejane nunca teve um professor ou professora negro.
Ela ressalta que o racismo está em situações cotidianas, como durante suas caminhadas no Parque Vaca Brava, em Goiânia, ocasião em que não é abordada por nenhum corretor de imóveis. No entanto, quando está acompanhada por suas amigas brancas, ela é a única que não recebe o panfleto. “Na cabeça das pessoas, uma pessoa negra não tem condições de comprar um apartamento que está sendo anunciado pelos corretores. Mas isso é uma coisa tão comum, tão normal, que as minhas próprias amigas não tinham percebido”, observa.
Ao visitar uma amiga, em uma de suas viagens para São Paulo, o porteiro do prédio indicou a entrada de serviço. “Ele disse: ‘A porta de quem vai trabalhar é ali’. Eu tive que falar que era amiga da fulana”, recorda.
Rejane ainda expõe que é um desafio se sentir pertencente: “Eu tinha vergonha de mim porque eu não me encaixava no meu meio. Não tem espaço para o meu perfil de pessoa.” Ela ainda questiona: “Com quantos médicos negros que você já consultou? Quantas pessoas negras você já viu em função de chefia? Será que não tem nenhum habilitado? Ninguém competente? Será que a gente tem espaço para ocupar essas funções?”, conclui.
Wladmir Wercelens, 22 anos, é estudante de Relações Públicas e estagiário há cinco meses na Coordenadoria de Cerimonial do TRT-GO. Segundo ele, a produção de eventos foi a área que mais o chamou a atenção e o fato que o motivou a iniciar sua trajetória no
tribunal.
O jovem relata que no início sentiu falta de pessoas de pele preta dentro da instituição, mas que com o tempo passou a entender que o processo de cotas para maior diversidade nos setores públicos é recente. Ele acredita que seu trabalho como estagiário inspira representatividade para futuras gerações. “Se, por exemplo, crianças de alguma escola vierem visitar o tribunal e me virem atuando como cerimonialista, elas podem pensar ‘Nossa, ele chegou lá. Eu também posso!’”, conta.
Ao relatar algumas experiências de sua vida, Wladmir relembra uma situação em que sofreu por um estigma que dói: ser associado a uma característica que o reduz como pessoa. “No meu antigo estágio algumas pessoas me chamavam de ‘o carinha de cabelo cacheado’, mas não se importavam de saber o meu nome e isso incomoda bastante”, afirma.
Sobre a comemoração do Dia da Consciência Negra, o futuro profissional de Relações Públicas destaca que essa data é um convite à conscientização e uma vitória de todos. Ele ainda ressalta que muitos casos de racismo são acobertados por uma suposta falta de intenção ou pela simples negação de comportamentos preconceituosos que fazem parte da estrutura da sociedade brasileira.
A relevância dessa discussão encontra respaldo nos próprios dados nacionais. De acordo com o Censo 2022 do IBGE, 56% da população brasileira se autodeclara negra (sendo 45,3% pardos e 10,6% pretos) o que evidencia a dimensão estrutural da desigualdade racial no país. Mesmo compondo a maioria da população, pessoas negras seguem sub-representadas em espaços de liderança, acesso educacional e postos de decisão, cenário que demonstra a necessidade de políticas públicas, iniciativas institucionais e ações de conscientização.
A centralidade do tema também foi reconhecida pelo Estado brasileiro. Em 2023, a Lei nº 14.759 instituiu o 20 de novembro como feriado nacional em memória de Zumbi dos Palmares e em homenagem à luta histórica da população negra. A data, agora oficialmente incorporada ao calendário cívico do país, reafirma o compromisso de manter vivas as pautas de igualdade racial, representatividade e enfrentamento ao racismo.
AB/SM/TM/LN
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