
A pesquisadora Lilia Schwarcz defende a importância dos deslocamentos como forma de romper com as estruturas que mantêm certos grupos em posições de privilégio:”A burguesia não é imortal. Não há nada imortal na história. Não há nada que o motor da história não possa mudar”
A historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz abriu o segundo dia do 5º Encontro Nacional de Memória do Poder Judiciário (ENAM) na manhã desta quarta-feira (7/5), no auditório dos Goyazes, na sede do TRT-GO. Com o tema Imagens da branquitude, a historiadora analisou imagens históricas, trazendo reflexões sobre como a construção da memória oficial no Brasil foi marcada por ausências simbólicas e pela naturalização de uma perspectiva branca como neutra e universal. Ainda na programação da manhã, especialistas trouxeram diálogos interdisciplinares integradores entre arquivos, bibliotecas, museus e centros de memória.
A mesa de abertura do segundo dia do 5º Enam contou com a presença da desembargadora Sulamir Monassa, presidente do TRT-8 (PA/AP), que também preside o Memojutra; a juíza federal Ingrid Schroder Sliwka, do TRF-4, coordenadora do Subcomitê de Instrumentos de Gestão Documental do Programa Nacional de Gestão Documental e Memória do Poder Judiciário (Proname); a juíza do Trabalho Anita Job Lübbe, do TRT-4 (RS), coordenadora do Subcomitê de Preservação Digital do Proname; e o juiz de Direito Carlos Alexandre Böttcher, do TJSP, coordenador do Subcomitê de Capacitação e Memória do Proname. A mesa foi presidida pelo desembargador Elvecio Moura, coordenador do Comitê de Documentação e Memória do TRT-GO e vice-coordenador do 5º Enam. Confira aqui a programação do evento que se encerra na próxima sexta (9).
O desembargador Elvecio Moura destacou a importância da participação ativa dos três tribunais goianos no 5º Enam, TRT-GO, TRE-GO e TJGO, e falou das suas expectativas. “Esperamos que tanto hoje como nos demais dias do evento tenhamos muitas coisas a aprender com as reflexões que serão trazidas pelos congressistas”, afirmou. A realização do 5º Enam conta também com apoio da Escola Judicial do TRT-GO (Ejud 18).

Da esquerda para a direita a juíza federal Ingrid Schroder Sliwka, do TRF-4, desembargadora Sulamir Monassa, presidente do TRT-8 (PA/AP), desembargador Elvecio Moura, a juíza do Trabalho Anita Job Lübbe, do TRT-4 (RS) e o juiz de Direito Carlos Alexandre Böttcher, do TJSP
Ao apresentar o currículo da historiadora Lilia Schwarcz, Elvecio Moura destacou sua trajetória como professora da USP e da Universidade de Princeton e autora de mais de 30 obras sobre a formação social e racial do Brasil. Ele também comentou que ela foi eleita no ano passado para ocupar a cadeira número 9 da Academia Brasileira de Letras (ABL), tornando-se a quinta mulher a integrar a instituição em sua atual composição.
Os representantes do TRE-GO e do TJGO também ressaltaram a importância institucional e simbólica do 5º Enam para o fortalecimento do Judiciário. O presidente do TRE-GO, desembargador Luiz Cláudio Veiga Braga, destacou que discutir temas como memória, cultura e diversidade é essencial para tornar a Justiça mais conectada aos interesses da sociedade. “Esperamos que esses diálogos tragam novidades, tragam novas construções para termos uma jurisdição mais acrisolada, mais aperfeiçoada, mais próxima dos interesses da sociedade”, afirmou.
Representando o TJGO, o desembargador Altamiro Garcia Filho destacou que a participação ativa do TJ no Enam é fundamental para promover a diversidade também dentro da própria instituição. Para ele, o encontro entre os três ramos do Judiciário em Goiás representa uma sintonia construída ao longo de diversas reuniões conjuntas voltadas para o acolhimento das diversidades e à promoção de um Judiciário mais inclusivo. “A conscientização de todos é de suma importância para plantarmos uma semente agora que possa gerar frutos no futuro, especialmente para acolher a diversidade”, declarou.
A historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz trouxe em sua palestra a proposta de provocar deslocamento e reflexão sobre os modos como o Brasil constrói sua memória oficial. Para ela, provocar desconforto é parte da estratégia pedagógica para sensibilizar plateias majoritariamente brancas. “O desconforto produz reflexão. É preciso deslocar para que as pessoas enxerguem o que antes não viam. A imaginação visual é poderosa, porque todo mundo já viu as imagens que eu trago, só que não as enxergou. Costumamos achar que ver é sinônimo de enxergar, mas ver é biológico e enxergar é cultural. Mostrar isso é fundamental”, afirmou ao referir-se às imagens apresentadas durante sua palestra.
Para a historiadora, autora do livro “Imagens da branquitude: A presença na ausência”, não há como pensar memória sem lembrar do esquecimento. “O Estado construiu uma memória oficial que apagou muitas vozes, sobretudo por meio de imagens, esculturas, mapas, propagandas, que reforçam a ideia de uma neutralidade branca. A branquitude é uma presença que se impõe pelo silêncio”, comentou, ao destacar que, enquanto a negritude é um movimento de autoafirmação, a branquitude é um movimento de autonegação.
Ao analisar as imagens trazidas, Lilia Schwarcz destacou a associação entre elementos religiosos e políticos em imagens de momentos importantes da história que foram registrados e imaginados em pinturas. Durante sua fala, a antropóloga explicou como pequenos detalhes nos registros artísticos trazem mensagens relacionadas a questões sociais, raciais e de gênero. Ao apresentar a obra “Redenção de Cam” (1895), do pintor espanhol Modesto Brocos, a palestrante apontou como as diferenças entre as vestimentas, os calçados e o local em que cada personagem se encontra mostram como a miscigenação era vista e divulgada como possibilidade de embranquecimento da população.

“Um jantar brasileiro” (1827), de Jean-Baptiste, e “Sentem para jantar” (2021), de Gê Viana. Obras foram discutidas na palestra.
Entre as imagens debatidas, está o quadro “Um jantar brasileiro” (1827), de Jean-Baptiste Debret. A antropóloga chamou atenção para como o próprio Debret descrevia que as crianças na imagem eram “como se fossem animais de estimação”. Em contraste com o pintor francês, Lilia trouxe também “Sentem para o jantar” (2021), releitura feita pela artista visual Gê Viana da pintura de Debret. Ela destacou as vestes elaboradas da família negra retratada na obra, a qual está sentada à mesa jantando e não em posição de servência. A expositora deu ênfase ainda na presença de um cachorro como animal de estimação na colagem digital de Gê Viana.
A historiadora abordou ainda a necessidade da branquitude se racializar, no sentido de produzir conhecimento e reconhecimento sobre seu local social de privilégio, apontando que isso é uma questão da nossa democracia. “A democracia tem que ser capaz de lidar com as novas agendas, de incluir novas cartelas de direito, que não são novas, são muito antigas. Mas é agora que a memória permitiu que elas saíssem do silêncio.”, afirmou ela. Finalizando sua fala, Lilia Schwarcz acrescentou que “a memória é um grande rio e ela trabalha em fluxo. Talvez é hora da gente interromper um pouquinho esse fluxo para pensar no nosso lugar. Que rio somos nós e que outros rios nós devemos incluir.”
Para a historiadora e antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, compreender o outro é mais do que um exercício acadêmico — é um processo transformador. “A burguesia não é imortal. Não há nada imortal na história”, afirma, ao refletir sobre os movimentos sociais e o papel das classes dominantes ao longo do tempo. Segundo ela, o motor da história é a mudança, e permanecer em zonas de conforto pode nos impedir de enxergar as transformações necessárias.
A pesquisadora defende a importância dos deslocamentos — simbólicos e concretos — como forma de romper com as estruturas que mantêm certos grupos em posições de privilégio, tanto materiais quanto simbólicas. “A antropologia parte do conceito de alteridade, inspirado em Rousseau: estudo o outro, nos seus limites, para compreendê-lo profundamente”, explica.
Mas esse estudo, segundo ela, não deve ser neutro. “Se for uma compreensão profunda, ela há de nos transformar. A alteridade só tem sentido quando age sobre mim, sobre a minha percepção do lugar que ocupo, lugar de privilégio material e simbólico que nós aqui habitamos”, conclui.

Da esquerda para a direita: bibliotecária Cássia Oliveira, desembargadora Sulamir Monassa, desembargador Mário Bottazzo, arquivista Daniel Flores e museólogo Mário Chagas
A segunda parte da programação da manhã contou com um painel com o tema “Diálogos interdisciplinares integradores entre arquivos, bibliotecas, museus e Centros de Memória: desafios e perspectivas possíveis”. O painel teve como presidente de mesa o desembargador do TRT-GO Mário Bottazzo e como mediadora a desembargadora Sulamir Monassa, presidente do TRT-PA/AP e do Memojutra.
O primeiro painelista foi o arquivista e professor doutor da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) Daniel Flores. Ele apresentou resultados preliminares de uma pesquisa da Ufal com alunos da graduação em Biblioteconomia e do Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação. Os pesquisadores constataram que muitos alunos que estavam chegando à universidade, apesar de estarem conectados à internet e ao mundo virtual por meio de seus smartphones, não estavam preparados para a literacia ou a alfabetização digital.
Ele apontou ainda que a pesquisa revelou a necessidade de se dedicar à preservação digital, ensinar os alunos a trabalharem com pacotes e bancos de dados e escaneamento, por exemplo. Daniel Flores ressaltou que é fundamental que as inteligências artificiais, tão populares hoje, se pautem em dados históricos. “Hoje, fundamentalmente, esses dados históricos, para as IAs, estão pautados em dados da internet. Isso é a pontinha do iceberg e o restante do iceberg está nos arquivos dos tribunais, das bibliotecas e dos museus e que não está sendo tratado pelas IAs. É como se essas inteligências artificiais estivessem míopes”, analisou.
Na sequência, a bibliotecária Cássia Oliveira, professora doutora da Universidade Federal de Goiás fez sua apresentação. Ela falou sobre a importância das bibliotecas, da leitura e do livro como lugares e experiências de preservação da memória social e cultural dos povos. Ela defendeu que o acesso a esses lugares, em especial à biblioteca, deve ser um direito de todos e não um luxo a ser desfrutado apenas pelas elites.
A professora falou sobre as diferenças entre as bibliotecas, os museus e os Centros de Memória e apontou que eles enfrentam desafios comuns, como a digitalização de seus acervos, a mediação de conflitos de memória, a inclusão de grupos marginalizados e a construção de narrativas plurais. “Enquanto instituição de memória, a biblioteca deve atuar como agente de mediação cultural e social, com o objetivo de garantir a democratização do conhecimento”, disse ela, ressaltando também que as bibliotecas devem ter acervos que reflitam os anseios de suas comunidades.
A última exposição do painel ficou com Mário Chagas, museólogo, poeta e professor doutor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Ele abordou o sagrado sob a perspectiva das religiões afro-brasileiras. O museólogo ainda destacou o racismo e a perseguição contra as religiões de matrizes africanas.
Mário Chagas exibiu o vídeo “Respeita Nosso Sagrado”, que mostra a transferência de mais de 500 objetos sagrados das religiões afro-brasileiras para o Museu da República, no Rio de Janeiro. O acervo conta com objetos sagrados apreendidos entre 1891 e 1946, período em que o candomblé e a umbanda eram oficialmente criminalizados pelo Estado brasileiro. Ele concluiu falando sobre a necessidade de reparação histórica, ressaltou a gravidade do assunto e afirmou que a Justiça tem relação com isso.
O 5º Enam segue até sexta-feira, 9 de maio, com atividades distribuídas entre os três tribunais. A programação inclui painéis temáticos, mesas redondas, exposições e apresentações culturais, todas voltadas à valorização da memória institucional e ao fortalecimento de um Judiciário mais inclusivo, diverso e consciente de seu papel histórico.
O evento é aberto para participação presencial apenas aos participantes que se inscreveram previamente, no entanto, as palestras e painéis realizados na sede do TRT-GO estão sendo transmitidos ao vivo pelo canal do TRT-GO no YouTube. Acesse abaixo os links para assistir às próximas programações do encontro.
7/5/2025 – período matutino – Palestra: Imagens da branquitude: a presença da ausência – Dra. Lilia Moritz Schwarcz e Painel: Diálogos Interdisciplinares entre Arquivos, Bibliotecas e Museus: desafios e perspectivas possíveis
https://www.youtube.com/watch?v=UOM91iAP180
7/5/2025 – período vespertino – Tema 1: Memórias pulsantes: odores, sons, cores, luz – Professora Dra. Heloisa Helena Fernandes Gonçalves da Costa e Painel: Implantação de Repositório Arquivístico Digital Confiável (RDC – Arq.)
https://www.youtube.com/watch?v=USt6MdfXJAU
8/5/2025 – período matutino – Painel: Deu Certo! Boas Práticas de Gestão da Memória. Projeto: Descrição dos processos históricos do Superior Tribunal Militar (STM); Exposição Virtual: 25 anos de uso da urna eletrônica; Exposição Virtual: 150 anos – 7 Tribunais e TJSP – Podcast Casos Forenses.
https://www.youtube.com/watch?v=2AAySzyX4kc
9/5/2025 – período matutino – Encerramento do 5º Enam. Leitura da Carta de Goiás e Entrega do Prêmio CNJ de Memória do Poder Judiciário.
https://www.youtube.com/watch?v=W2aE7clEDmM
Veja abaixo mais fotos do evento:
Galeria de fotos do dia 7/5/2025
LN/TM/WF/JA
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