


Há 136 anos, o Brasil aboliu oficialmente a escravidão. No entanto, as marcas deixadas por esse período ainda são visíveis na sociedade. Pessoas pretas e pardas enfrentam desigualdades socioeconômicas profundas, além de preconceito e discriminação devido à cor da pele. Elas representam mais da metade da população brasileira (55,5%, segundo o IBGE), mas estão entre aquelas que recebem os salários mais baixos e têm menos acesso à educação, a cargos gerenciais e a posições de relevância no serviço público.
Segundo dados do IBGE (2022), 46,7% das pessoas negras trabalham na informalidade. As que estão no mercado formal recebem 38% a menos que pessoas brancas, mesmo as que têm o mesmo nível de formação profissional. Além disso, entre pretos e pardos, o índice de analfabetismo chega a 18,9%, enquanto entre os brancos essa taxa é de 4,3%. No Poder Judiciário, apenas 14,5% dos juízes e 27,1% dos servidores se declararam pretos ou pardos, conforme dados do Conselho Nacional de Justiça de 2023. Nesta matéria especial, servidores, magistrados, terceirizados e estagiários do TRT-GO compartilham reflexões sobre os desafios e a resistência da população negra.
Adriane Andrade foi a primeira colocada nas vagas reservadas para a população negra no concurso nacional unificado da Magistratura Trabalhista de 2022. Ela assumiu o cargo de juíza do trabalho no TRT de Goiás em agosto deste ano. Formada em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Adriane lembra com orgulho que essa foi a realização de um sonho do tempo de faculdade. À época, um amigo já dizia: ‘Adriane, você tem a cara de juíza do Trabalho’. “O sonho da magistratura e a missão de fazer justiça em um contexto de relações assimétricas de poder, e normalmente marcado por fatores sobrepostos de opressão, sempre permaneceram na minha mente e no meu coração”, afirmou a baiana. Ela acredita que a presença de pessoas negras na magistratura é essencial para o enfrentamento do racismo que atravessa as relações, as estruturas sociais e as instituições.
Atuando como juíza substituta da Vara do Trabalho de Caldas Novas, Adriane relembra, com emoção, os olhares de reconhecimento de pessoas negras em suas audiências, evidenciando a importância de ocupar espaços de poder. Para ela, o dia 20 de novembro, data em homenagem ao líder negro Zumbi dos Palmares, remete à luta por equidade racial e à emancipação das pessoas negras. “Essa data também é um dia de alegria, um dia em que lembro e me conscientizo que eu sou resistência e que sou a realização do sonho de muitos ancestrais que foram escravizados e objetificados”, ressalta, enfatizando que, apesar de todas as opressões e desigualdades, as pessoas negras estão aqui e agora existindo, resistindo e vencendo.
Servidor Manoel Camelo, representante dos servidores negros no Subcomitê de Diversidade e Equidade do TRT-GO
O servidor Manoel Camelo, representante dos servidores negros no Subcomitê de Diversidade e Equidade do TRT-GO, encara o desafio diário de trazer visibilidade e equidade para questões raciais dentro do Tribunal. O subcomitê, criado há um ano, tem como uma de suas primeiras tarefas mapear a quantidade de servidores negros, para que políticas afirmativas possam ser construídas com base em dados concretos. Conforme dados parciais do recadastramento anual de 2024, no TRT de Goiás, apenas 15 servidores se declararam pretos e 161 se declararam pardos. Já entre os magistrados, um se declarou preto e seis se declararam pardos. Para Manoel, a luta por igualdade não pode ser apenas individual, é uma batalha coletiva que requer união de esforços e comprometimento, independentemente da pessoa ser branca ou negra. “Precisamos racializar os debates e trazer uma perspectiva que faça justiça aos séculos de discriminação que moldaram o país”, defende.
Para o servidor, ofensas racistas dirigidas a pessoas negras têm raízes históricas profundas. Segundo ele, chamar hoje uma pessoa negra de ‘macaco’ não é apenas uma agressão verbal, mas remete a uma longa trajetória de desumanização e dor iniciada na época da escravidão. “Se essa história não existisse, me chamar de macaco não faria sentido. Por trás dessa palavra, há todo um contexto de séculos de opressão e tentativas de apagamento da identidade negra”, refletiu, ao destacar que o racismo estrutural no país remonta à escravidão e às políticas de embranquecimento do século XX, inspiradas em ideologias eugenistas e racistas, similares ao nazismo, visando “purificar” a população por meio da miscigenação.
Manoel Camelo destaca que os resquícios da escravidão ainda são evidentes, especialmente no mercado de trabalho. Ele menciona o exemplo das empregadas domésticas, profissão ocupada majoritariamente por mulheres negras (65%, segundo o IBGE). “A luta por igualdade de direitos foi longa para as trabalhadoras domésticas, demonstrando como as marcas da escravidão ainda impactam a sociedade”, disse ao lembrar que a lei que equiparou seus direitos aos de outros trabalhadores formais só foi sancionada em 2015. “Quanto mais alta a hierarquia, mais clara fica a desigualdade, enquanto na base são as mulheres negras que sofrem mais”, avalia ao afirmar que elas estão na base da pirâmide social e são as mais exploradas, mas também possuem um papel central na luta por transformações sociais.
Mariana Consyglyere, estagiária de design gráfico do TRT-GO
A estagiária de design gráfico do TRT-GO Mariana Consyglyere refletiu sobre a importância das políticas de inclusão no mercado de trabalho e nos cargos gerenciais. Embora não tenha vivenciado discriminação no trabalho, ela acredita que ainda há barreiras para diálogos sobre inclusão, já que os espaços, em geral, ainda têm poucas pessoas negras na liderança e supervisão. “Isso cria dificuldades para abordar temas raciais e para o acolhimento de pessoas negras”, opina.
Mariana reflete sobre seu longo percurso de autoconhecimento como parte da população negra, um caminho que se entrelaça com a trajetória de sua mãe, uma mulher negra que começou a trabalhar aos 14 anos para sustentar a família. “Eu era clara demais para ser negra e escura demais para ser branca, o que me fez, assim como minha mãe, nunca recorrer ao sistema de cotas, pois achava que era apenas para pessoas pretas”, recorda. Seu relato evidencia o dilema de muitos brasileiros pardos, que se veem em um “limbo identitário”, um dos desafios para o movimento Consciência Negra.
Segundo o Estatuto da Igualdade Racial, a população negra é composta por pessoas que se declaram pretas e pardas, mas, para Mariana, o reconhecimento veio com o tempo, ao perceber a falta de representatividade em espaços acadêmicos e profissionais. “No ensino médio, 80% dos meus colegas eram brancos, e o mesmo aconteceu quando comecei a estagiar”, relembra. “Por isso, vejo a importância de abordar temas de inclusão, para que mais pessoas, como minha família, reflitam sobre sua negritude e seu direito de acesso a benefícios”, conclui.
Paulo Sérgio, trabalhador terceirizado que presta serviços ao TRT-GO
Paulo Sérgio dos Santos é um trabalhador terceirizado que presta serviços para o Tribunal há mais de 20 anos. Ele atua como entregador na Secretaria de Material e Logística. Assim como muitos jovens negros brasileiros, ele teve que abandonar os estudos para poder trabalhar e ajudar no sustento da família. Hoje ele conta com orgulho que o tribunal é uma segunda casa que o acolheu. Casado e pai de três filhos, ele vê seu trabalho como uma oportunidade constante de aprendizado e de troca de experiências. Além de sua função no TRT, Paulo também trabalha como garçom em eventos. “Procuro servir da melhor forma e receber o carinho das pessoas”, compartilha, destacando a importância das boas relações no trabalho.
Questionado sobre experiências com racismo, Paulo revela que, embora já tenha ouvido palavras desagradáveis, tenta ignorar atitudes racistas e não carregar esses momentos como mágoa. “Às vezes, as pessoas estão sufocadas e acabam desabafando em cima da gente, mas bola para frente”, diz ele. Para Paulo, o respeito e a inclusão da população negra no Brasil ainda precisam avançar, mas acredita que o cenário está mudando aos poucos. “Às vezes a nossa cor não é muito aceita. Mas creio que isso vai mudar. Com um pouco de paciência, vamos superar isso”, reflete, trazendo uma visão esperançosa para o futuro.
Formada em Direito pela Universidade Federal do Maranhão, Brenda Arouche tomou posse como analista judiciária no TRT-GO há pouco mais de um ano, aprovada pelo sistema de cotas raciais. Para ela, as micro-agressões de um racismo estrutural no Brasil e a sub-representação são aspectos relevantes na vivência das pessoas negras. “No meu caso, não me sentir representada e capaz de alcançar espaços que são majoritariamente ocupados por pessoas diferentes de mim foi um fator de superação. Somos a maioria da população brasileira, porém a minoria nas universidades, em cargos públicos, em espaços de poder e em representação política”, refletiu a servidora.
Servidora Brenda Arouche
Brenda citou a área do Direito como uma das várias áreas de trabalho racialmente excludentes, o que, segundo ela, é visto claramente pela minoria de negros e negras que se destacam nesse ramo. “Por isso entendo ser tão importante a política de cotas, que promove a inclusão de estudantes negros nas universidades e profissionais negros no serviço público, tornando esses espaços, e toda a sociedade, mais plurais e diversos”, defende. Para Brenda, o dia da Consciência Negra nos permite valorizar a importância da identidade e da cultura do povo negro e proporciona uma reflexão dos desafios enfrentados.
A maranhense conta que começou a estudar para concursos públicos desde a faculdade. Antes de assumir o cargo de analista judiciária do TRT-GO, ela já havia ocupado os cargos de analista na Câmara Municipal de São Luís do Maranhão e técnica judiciária no TRT do Maranhão. Ela aconselha as jovens negras a buscarem seu espaço inspirando-se em outras mulheres negras que vivenciaram desafios semelhantes. Para ela, é essencial ter uma rede de apoio para conseguir superar as dificuldades que o racismo estrutural nos impõe. “Gostaria de dizer também que elas acreditem no seu potencial, porque a força da juventude negra é imensa, e que não desistam de ocupar espaços apenas em razão de não se reconhecerem lá, todos os lugares também nos pertencem”, concluiu.
Para o desembargador Marcelo Pedra, coordenador do Subcomitê de Diversidade e Equidade do TRT, assim como em outros campos da sociedade, no topo da hierarquia do Judiciário, a sub-representação de negros é marcante. Segundo o Diagnóstico Étnico-Racial do Poder Judiciário de 2023, apenas 1,7% de todos os juízes brasileiros são pretos, 12,8% são pardos e 84% dos magistrados brasileiros são brancos. “Precisamos não apenas de políticas, mas de uma transformação cultural que abrace a diversidade e a equidade como princípios centrais”, afirma. Para ele, o Dia da Consciência Negra representa uma oportunidade para refletir sobre as barreiras que ainda persistem e para fortalecer a luta contra o racismo estrutural.
Desembargador Marcelo Pedra
Formado em Direito, Marcelo Pedra assumiu o cargo de juiz do trabalho em 1993. Ele conta que, nestes mais de 30 anos de Tribunal, nunca enfrentou discriminação no trabalho. “Entretanto, em minha vida pessoal, como muitos brasileiros negros ou pardos, passei por situações de racismo e discriminação que eram naturalizadas em outros tempos”, relata. Hoje, o desembargador vê que há mais conscientização, leis que coíbem práticas racistas e maior oportunidade para reagir. Mas, para ele, vivemos um processo civilizatório que ainda busca respeito e equidade. “O Judiciário ainda carece de representatividade de pessoas negras, o que reforça a necessidade de políticas inclusivas, como cotas e eventos de conscientização. No entanto, precisamos também de educação de qualidade para permitir que pessoas negras e de outras minorias possam competir em igualdade”.
Para jovens negros que almejam o sucesso profissional, especialmente na carreira jurídica, o desembargador Marcelo Pedra ressalta a importância do conhecimento como ferramenta de libertação e ascensão social. Ele orienta que a qualificação deve começar cedo, com dedicação ao aprendizado, tanto na educação formal quanto na formação cultural. Cursos, graduações e especializações são essenciais, mas não suficientes: é preciso enriquecer-se culturalmente por meio da leitura de obras clássicas, que oferecem mais do que informações, transmitindo valores, conceitos e noções de humanidade. “Livros de autores como Machado de Assis e outros grandes clássicos são fundamentais para desenvolver empatia, compreensão e a capacidade de lidar com conflitos humanos de maneira sensível e justa”, afirma. Essa bagagem cultural, segundo ele, é crucial para construir um olhar humanizado e equilibrado, qualidades indispensáveis para aqueles que desejam exercer a magistratura com competência e ética, seja negro ou branco.
LN/LB/WF
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